Daniel Bastos
As comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo são um campo fértil em exemplos notáveis de uma cidadania comprometida com a dignidade do ser humano, merecedores do nosso maior respeito e admiração.
Um desses exemplos inspiradores, que nunca devemos esquecer, é indubitavelmente o do comendador Carlos Ramos, antigo conselheiro da comunidade portuguesa na Suíça, a quem tem devotado ao longo das últimas décadas uma intensa dinâmica associativa, e um dos sobreviventes e heróis de Alcafache, o maior acidente ferroviário de sempre em Portugal.
Natural do concelho de Tondela, distrito de Viseu, Carlos Ramos decidiu emigrar para a Suíça em 1985, aos 25 anos de idade, em demanda de melhores condições de vida e numa época em que a nação helvética começava a tornar-se o principal polo de atração da emigração lusa em detrimento da França. A 11 de setembro desse ano, o jovem tondelense apanhou o “comboio do emigrante” Sud Express, em Santa Comba Dão, que o levaria para a Suíça, sendo que apenas 20 minutos após o início da viagem sobreveio um choque frontal entre o Sud Express e o regional que vinha da Guarda.
O trágico acidente ferroviário, que ocorreu junto ao Apeadeiro de Moimenta-Alcafache, na freguesia de Moimenta de Maceira Dão, concelho de Mangualde, e cuja estimativa oficial aponta para 49 mortos, dos quais apenas 14 foram identificados, continuando ain-da 64 passageiros oficialmente desaparecidos, projetou Carlos Ramos do comboio mas sa-bendo que havia pessoas presas dentro da carruagem, regressou ao mesmo e conseguiu salvar duas vidas tendo com o seu gesto assombroso partido as pernas e sofrido queimaduras em 70% do corpo.
Gravemente ferido, o sobrevivente e herói de Alcafache seria evacuado para Lisboa no helicóptero que transportava o então Presidente da República, Ramalho Eanes, que acabou por ter um papel decisivo no seu salvamento e com quem criou uma forte amizade que perdura até aos dias de hoje. Após um período doloroso de recuperação, que incluiu dezenas de operações, e que nem sempre teve o devido reconhecimento do seu gesto de altruísmo extraordinário por parte dos responsáveis dos Caminhos de Ferro Portugueses, Carlos Ramos emigraria definitiva-mente para a Suíça em 1993, já casado e com um filho de um ano, estabelecendo-se em Neuchâtel como viticultor.
Foi a partir da capital do cantão suíço homónimo que o herói sem capa da comunidade portuguesa em terras helvéticas encetou uma relevante dinâmica em prol do movimento associativo luso. Designadamente, como fundador em 2007 e coordenador, até à atualidade, da secção do PS/ Neuchâtel; Presidente da Mesa da Assembleia do Centro Português de Neuchâtel de 2008 a 2018; Presidente do Grupo de Veteranos de Neuchâtel de 2004 a 2009, e entre 2013 e 2014; Presidente da Assembleia Geral da Casa do Benfica de Neuchâtel de 2016 a 2018, e da Direção entre 2018 e 2020; Presidente da Comissão de Pais de Neuchâtel de 2002 a 2009; e membro do Conselho Consultivo da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Berna entre 2007 e 2015, que em conjunto com compatriotas estabelecidos em Neuchâtel, tem possibilitado suportar as despesas ligadas ao repatriamento de portugueses cujas famílias manifestem parcos rendimentos.
Contexto que já contava com uma estreita ligação ao movimento associativo da sua terra natal, e que o catapultou até há poucos anos como membro do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) da Suíça, Áustria e Itália, onde entre 2008 e 2015 desempenhou as funções de 1.º vice-presidente do Plenário do CCP, e membro da Comissão Permanente do Associativismo e da Comunicação Social.
Radicado há quase trinta anos na nação helvética, onde em 2019 foi distinguido com a Medalha de Reconhecimento da Cidade de Neuchâtel, em homenagem ao seu percurso cívico que inclui um importante contributo na Federação dos Imigrantes em Neuchâtel, e no Conselho de Imigração do Cantão de Neuchâtel, o exem-plo de vida inspirador e notável do emigrante tondelense, foi oficialmente reconhecido em 2018, quando o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com a presença do general Ramalho Eanes e o então Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, distinguiu Carlos Ramos, no Palácio de Belém, com as insígnias de Comendador da Ordem do Mérito.
Uma ordem honorífica portuguesa que visa distinguir atos ou serviços meritórios que revelem abnegação em favor da coletividade, praticados no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, e que congregou nesse mesmo ano com a Medalha de Valor e Altruísmo, entregue pela Câmara Municipal de Tondela, em reconhecimento do seu heroísmo no acidente ferroviário de Alcafache.
Uma das figuras mais conhecidas da comunidade lusa em Neuchâtel, o exemplo de vida do comendador Carlos Ramos, detentor de um espírito abnegado, franco e resiliente, revive a máxima de Giacomo Leopardi: “O primeiro motivo por que se está disposto a ajudar outro nas devidas ocasiões é a alta apreciação que se tem de si mesmo”.