› Ilídio Morgado
Silêncio. O silêncio naquele dia, naquela praça, daquela multidão ansiosa em silêncio, foi um marco que antecedeu a explosão de alegria, a libertação de gritos contidos por décadas de ditadura.
Nesta mistura de ansiedade incerta, o jornalista Adelino Gomes, no meio de tanta gente desconhecida, viu-se de repente entre amigos de todos os dias, de todas as horas, nas esquinas das lutas clandestinas, nos traços da censura da PIDE, nos lamentos lancinantes de quem via partir para guerras injustas os seus filhos. Era um país que lançava um grito em uníssono, a voz de um povo oprimido, a voz de todos nós.
No âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de abril, foi a data assinalada por diversas iniciativas durante quatro dias na localidade de Renens, em ações culturais de ordem vária organizadas pela FAPS, pelo EPE e pelos consulados e embaixada de Portugal na Suíça. Um dos convidados foi Adelino Gomes, nome incontornável do jornalismo português, figura ímpar e testemunha privilegiada do dia que se sabia estar para chegar, mas sem data marcada ou aviso prévio, 25 de abril de 1974. Entrevistámo-lo nas instalações do Consulado Geral de Portugal em Genebra, na companhia da cônsul-geral Leonor Esteves, e de António da Cunha, professor universitário na Suíça e dirigente associativo desde há décadas. Falámos do 25 de abril, mas, também, da sua grande paixão, o jornalismo.
O Gazeta Lusófona dá-lhe as boas-vindas e congratula-se por poder conversar com um dos muitos presentes, in loco, de um dos dias mais importantes na vida do nosso país. A temática é obviamente o 25 de abril…
Agradeço o convite e a honra que é estar convosco e a receção que me dedicaram. Antes de me fazer qualquer pergunta, há uma honra prévia que foi o convite que me foi feito para estar presente nas comemorações em Renens. Com alguma, digamos, autoridade na matéria, autoridade de quem anda há três meses a responder a convites em Portugal para falar sobre o 25 de abril. Normalmente fazemos perguntas sobre quem está presente, quem vai, se há muitos jovens e, por vezes, fico aborrecido quando se queixam da falta de jovens neste tipo de iniciativa, porque afinal o 25 de abril é para os jovens. O que verifiquei nestes três dias em Renens é que aqui encontrei tudo. Jovens, emigrantes pais dos jovens, uma geração já aqui nascida numa organização ímpar superiormente coordenada pelo António Cunha que, depois de muitos anos em que viveu ele também na pele, as lutas estudantis e a “revolta silenciosa” que antecedeu o 25 de abril, está ele aqui, na Suíça, a alimentar o espírito que esteve, está e estará sempre presente nos valores do 25 de abril. Aqui esteve tudo, concertinas, música ligeira, fado, simulações de parlamento com jovens, filmes, exposição de fotos e relatos de quem viveu por dentro o 25 de abril. É algo de realçar e de transmitir vezes sem conta este esforço conjunto em prol da memória de um povo.
A Dra. Leonor Esteves quererá, certamente, dar uma palavra sobre a vinda do Adelino até esta área consular…
Sim, com certeza. A vinda do Adelino Gomes é uma honra para mim pessoalmente e igualmente para o Consulado, assim como a presença do António Cunha, pessoa de muito valor para a comunidade portuguesa, decano de lutas e iniciativas várias, presidente da Federação das Associações Portuguesas na Suíça. Na minha carreira diplomática já passei por diversos países e cabe-me assinalar que nunca tinha assistido a este tipo de comemorações do 25 de abril com esta envergadura, grandeza, qualidade e participação. Foram dias de grande partilha da portugalidade, da nossa história, não numa onda de saudosismo, mas voltada para o futuro. Comoveu-me bastante as transcrições áudio dos testemunhos apresentados, assim como o 25 de abril projetado para o futuro, numa perspetiva de transversalidade muito importante na vida da comunidade e que se projetará sem dúvida em outras iniciativas. Agradeço especialmente ao Professor António Cunha e a todos os que participaram neste evento tão especial.
Professor António Cunha. presidente da FAPS desde há muito, ainda com tanta força para promover este tipo de iniciativas…
Eu tenho de dizer que estas iniciativas só puderam ser concretizadas com a ajuda de muita gente. Depois de termos organizado o primeiro Fórum Português na Suíça, espaço de debate na comunidade sobre assuntos pertinentes para quem aqui vive, pensámos logo neste segundo Fórum que seria o ideal para as comemorações do 25 de abril. Tende a ser um espaço de diálogo, de partilha e de esperança no desenvolvimento das interações da comunidade num país fracionado por cantões e em que por vezes é difícil interagirmos. Assim nasceu esta ideia fruto de um trabalho conjunto em que durante dois anos foi pensada para a sempre bem presente temática da democracia e liberdade, marcas indeléveis do 25 de abril.
Adelino, naquele dia, no dia em que se libertou o dia, um dia de luz, o que significou para si estando ali, presente, com 29 anos de idade, cidadão, jornalista…
Vim da estrada de Benfica, avisado que alguma coisa estaria a acontecer. Fui até ao Terreiro do Paço, onde uma multidão se tinha juntado, muitos vindos da outra margem, de Almada nos cacilheiros, e que por ali se foram aglomerando por não saberem para onde ir e porque estava tudo fechado. Na altura estava impedido de trabalhar na rádio porque não tinha entregue uns textos para a censura controlar, um dos momentos da vida em que as nossas decisões nos marcam para sempre, firmes nas nossas convicções ou débeis de carácter. Trabalhava na Rádio Renascença onde fui impedido de continuar, os programas foram sendo “eliminados” e acabei por vir trabalhar para a Alemanha, para a Deutshe Wella, depois recebi um convite para ir trabalhar para uma revista da oposição, a Seara Nova, e no 25 de abril estava a trabalhar para essa revista. Fui avisado e fui à procura dos acontecimentos, andei até chegar à baixa até me encontrar no meio daquela multidão anónima. Tudo em silêncio. Impressionante. O silêncio era quem mais ordenava. Até às 10h45 imperou um silêncio sepulcral. O silêncio do regime em que vivíamos, onde uma palavra mais forte implicava a prisão ou pelo menos umas cacetadas. Só às 10h45 em que a coluna do Maia arranca pelo arco da Rua Augusta para subir para o Rossio para depois seguir para o Largo do Carmo, é que de repente as pessoas começaram a falar. Acabaram ali 48 anos de silêncio, o silêncio da ditadura, as vozes começaram a gritar, a liberdade começou a gritar. Durante 45 minutos os gritos de liberdade fizeram-se ouvir e subiram de tom. No meio de tudo isto eu era um falso repórter, a revista só iria sair a 1 de junho, não tinha papel, nem caneta e muito menos gravador para registar tudo aquilo. No meio de tudo isto, dois repórteres entrevistaram-me e ofereceram-me a possibilidade de comunicar através dos seus microfones. Dois jovens jornalistas, Paulo Coelho e Pedro Laranjeira, num momento altíssimo das suas carreiras, na reportagem da vida deles e que pouco me conheciam, disponibilizaram a sua ferramenta para que eu pudesse, também, reportar em direto todas aquelas sensações e acontecimentos, a reportagem da minha vida. Demonstra uma nobreza de alma extraordinária. Naquela massa de gente e militares, fruto do meu conhecimento pessoal com o Salgueiro Maia, de quem fui colega de liceu, consigo chegar à fala com ele e pedi-lhe que deixasse os jornalistas passarem para o cerne da ação ao que ele anuiu de imediato. Pedi-lhe que fosse proporcionado uma viatura e ele imediatamente coloca uma à nossa disposição e lá fomos nós na coluna militar.
Falando da nobreza jornalística, está de acordo com as críticas que hoje são feitas sobre o declínio da qualidade jornalística e da comunicação social em geral?
Há uma ideia que considero errada em relação a isso. Antigamente, tal como hoje, havia gente extraordinária, assim como gente muito má, recordo grandes jornalistas, Artur Agostinho, Fernando Pessa, de quem posso contar uma história rápida. Em 1936, reportava o Jornal do Comércio e Colónias o grande acontecimento mediático na altura, a rádio. Num festival aéreo na Porcalhota, hoje Amadora, o Fernando Pessa foi fazer uma reportagem e quando perguntado sobre o que era ser repórter respondeu: é dizer de viva voz, e repentinamente, o que se vê e o que se ouve. Significa uma encomenda de trabalho enorme, quando se reporta não há muito tempo para refletir, é palavra é imediata, nem sempre sai como se espera e não há como recuperar uma palavra mal empregue, está feito. O Batista Bastos, outro grande jornalista dizia sempre que o repórter é aquele que vai ali, vem já, com palavra célere, olhar rápido. Vê, não tem tempo para pensar, tem na memória conhecimento que lhe permite, ou não responder no imediato, uns conseguem outros menos. Hoje há muitos jornalistas e a proporção é em conformidade. A nova geração tem um desafio enorme, a mudança de paradigma comunicacional sem ter tempo investigação e consulta.
A Dra. Maria Leonor Esteves quer acrescentar algo?
Sim, hoje o contexto é muito diferente, há escolas, as formações académicas substituíram a forma mais genuína da comunicação. O afinamento da informação é hoje muito difícil de concretizar por dificuldades da feroz dinâmica informativa que a toda a hora debita novos factos, novas opiniões, acontecimentos. Difícil de acompanhar para a maioria de quem quereria estar melhor preparado para poder ver, ouvir e transmitir de forma mais objetiva. Se me permitem, julgo que haverá hoje uma proliferação de comentadores inusitada que não contribui para um bom desempenho jornalístico.
O fascínio do jornalismo está, em muito, na maravilhosa aventura que é podermos viajar, conhecer, sem sairmos do nosso lugar. Falámos sobre essas viagens e o Adelino mencionou a história do Torneio de Montreux em hóquei patins…
Sim, a concorrência de hoje já não permite esse tipo de jornalismo. O mediatismo é global. As redes sociais ocupam um grande espaço. Vejam as dificuldades que hoje os jornais têm, sobrevivem muito mal. Não há meios para enviar repórteres, infelizmente.
Aproveitamos o facto de termos connosco alguém que igualmente viveu o 25 de abril por dentro de uma forma diferente, mais dolorosa, penosa, o professor António da Cunha, a quem peço que nos relate esses tempos e como veio para a Suíça.
Pois, eu cheguei à Suíça em 1972, depois de me ter envolvido nos tumultos estudantis em Coimbra. No auge da guerra colonial, em Coimbra, uns colegas marcaram umas reuniões para mostrarmos solidariedade com dois colegas que tinham sido presos. Num encontro fortuito com uma colega, pediu-me para distribuir uns panfletos e foi o momento entre o que nos impulsiona e a revolta interior face a injustiças que me levou a concordar. Pelas 8h da manhã, quando distribuía esses documentos em frente à escola, aparece um polícia que me aponta uma pistola à cabeça e que me leva de seguida para os calabouços da esquadra com a pistola nas costas. Tinha 18 anos. A experiência foi muito traumatizante, um dos meus colegas suicidou-se e convicto que seria sempre perseguido, impedido de me inscrever na universidade, decidi sair, dar o salto, e vim para a Suíça, onde já tinha um irmão. Aqui encontrei muitos exilados do regime, e juntei-me a esse grupo. Quando se deu o 25 de abril estava em Lausanne e, juntamente, com um amigo aqui exilado, desertor, decidimos ir participar e viajámos no 1° se maio, ainda com grande receio por podermos ser presos, mas chegados a Vilar Formoso, em autocarros fretados pelo PS na altura, fomos recebidos com grande euforia, abraços efusivos. Fomos para Lisboa, para aquela colossal manifestação de liberdade. Fiquei em Portugal, ajudei a sanear algumas câmaras municipais, juntas de freguesia e depois, com o conselho da minha mãe, voltei para a Suíça e, na universidade de Lausanne, inscrevi-me e pedi que me ajudassem a encontrar um meio de financiar os estudos, propus ser chauffeur de táxi e ofereceram-me uma bolsa de estudo. Uma oportunidade única que agarrei de unhas e dentes.
A democracia está em perigo de ser adulterada? Há o risco de transformar a democracia em algo que não transmita a etimologia da palavra, “demos” e “cracia”, poder do povo?
Julgo que a intolerância é um conceito insuportável, devemos acarinhar a democracia e promover o debate público a discussão de ideias num espaço aberto e livre. Embora existam hoje meios extraordinários de discussão, o que verifico é que a construção de ideias é hoje condensada de tal forma que as pessoas falam para dentro de si mesmas e não em partilha. Por isso, o movimento associativo é importante para que nestes encontros, nestes fóruns, encontrem um espaço onde se possam confrontar presencialmente, em que o aspeto humano seja a parte mais importante e que as ideias possam ser discutidas num ambiente mais “saudável”, sem interferências extra, onde a alma se abre. Temos de repensar como trocar ideias em democracia face a todos estes novos instrumentos de comunicação, é um espaço a reconstruir. Eu fico revoltado com alguns jornalistas com a forma como apresentam a realidade, passaram a ser comentadores em vez de jornalistas. O ponto de vista faz a vista, a distorção provocada pelos pontos de vista comentaristas, faz com que perdemos a capacidade de discutir positiva e dialeticamente a democracia, reconstruir um espaço público de debate.
A mesma pergunta dirijo-a para o Adelino…
Estou de acordo no essencial. Este fórum tinha um título, “Liberdades individuais, responsabilidades coletivas”, foi um acontecimento. Estava cheio de pessoas a assistir, a dizerem com entusiasmo sobre o trabalho coletivo que fizeram, uma lição de democracia, de participação. A preservação da democracia, citando Churcill, a democracia é entre os piores o melhor dos sistemas. Aqui há uma responsabilidade coletiva atendendo às liberdades individuais, mas coabitando de forma responsável coletivamente. Hoje, qualquer cidadão pode ler o que lhe apetecer, inclusive bujardas que só trazem confusão. Mas podem igualmente ler jornais, por exemplo, onde a filtragem beneficia quem lê e responsabiliza quem o escreve. O que tem matado a pouco e pouco a democracia, é a proliferação de informação não filtrada ou maltratada.
E o que responder a quem acusa a democracia de ser “culpada” de todos os males, nomeadamente da corrupção, más escolhas?
O desafio é enorme, mas é fruto da democracia e, em última análise, é o resultado da escolha dos eleitores. A responsabilidade é do povo, dos que votam. É as escolhas que se fazem hoje muito depressa, com base em informação que ele escolheu e que por sua vez os direcionam para a escolha de voto. Acusam-se os políticos de serem corruptos, eu pergunto, e quantos outros portugueses corruptos existem pelo país fora? O exercício da democracia dá a última palava ao povo, pode este fazer escolhas menos boas que o deixam mal representado. Na ditadura não havia esta oportunidade de escolha, hoje não há escolha a mais. António Barreto, quem eu muito aprecio e que foi aqui exilado, diz algo em relação à sua pergunta que eu tinha preparado para ontem e que aqui aproveito. Esta consideração, reflexão, está plasmada num livro de uma jornalista espanhola ao qual deu o título de “O país de abril”. Ela versa sobre a dita culpa da democracia e do 25 de abril para os males da sociedade e diz assim: “o 25 de abril não tem culpas, nem responsabilidades no que se seguiu, é uma data, foi um facto, um acontecimento raro, levado a cabo por um punhado de militares e posteriormente secundado por quase todas as forças armadas e pela população. A partir daí, bem ou mal, para o melhor e para o pior, as eleições foram dos portugueses, as decisões foram dos seus dirigentes, as opções foram do eleitorado, as determinações foram das instituições e dos partidos políticos, foram nossas, as justa e as erradas. O que o 25 de nos revelou foi que a liberdade está acima de tudo, podem ser importantes outras condições como o bem-estar e indispensáveis outros valores como a justiça e a igualdade, mas tudo depende da liberdade que serve para criar os outros”. Sem liberdade não há democracia, é a mãe de tudo. Eu levo daqui muita esperança pelo que vivi nestas jornadas, apresentaram-se ali pessoas que saíram de Portugal por causa da miséria, da guerra, nunca conheceram a democracia no seu país, por isso, a forma como se transmitiu os valores da democracia deixam-me com muita esperança no futuro da democracia.
Uma última palava sobre o que esperam do 25 de abril para os jovens?
Adelino Gomes – Futuro. Que eles o continuem.
António da Cunha – É um processo em que devemos estar sempre vigilantes e alertar para o que representa aceitando e discutindo em debate público o essencial da vida em democracia.
VIVA O 25 DE ABRIL!!! VIVA A LIBERDADE!!!