› Ilídio Morgado
Esta é a história de uma mulher, uma mulher portuguesa. Poderia ser a história de muitas, mas cada história é singular, única, irrepetível.
Nos seus olhos traz a luz da região do Douro, das serras que calcorreava em pequena. No sorriso o brilho intenso dos seus sonhos.
Nasceu a 29 de dezembro de um ano entre 1970 e 1980, não se pergunta a idade a uma senhora, na aldeia de Vale de Paus, concelho de Resende, distrito de Viseu. Com o cheiro do Douro e das cerejas, dos montes e vales que a viram nascer.
De uma família modesta, 5 irmãos, maioria esmagadora de mulheres, quatro para um, a segunda de entre elas, tem a determinação duriense nas veias, a garra de quem se habituou a lutar desde muito cedo. De carácter forte, emana um jeito confiante de agir que enfrenta o mundo com a certeza de poder derrubar os obstáculos à sua felicidade.
De sua graça Sandra Maria Rodrigues Maria Mendes, é uma mulher portuguesa da qual contamos um pouco da sua história de mulher, de emigrante, de menina, mãe, amiga.
Sandra, conte-nos como tudo começou?
Nasci em Vale de Paus, aldeia pequena no concelho de Resende. Os meus pais além de cultivarem a terra tinham uma mercearia/café na qual todos ajudávamos. Eu sempre tive jeito para estar a vender e a brincar com os clientes, desde muito pequena comecei a ajudar o meu pai e gostava, falava muito e era uma maneira de ocupar o tempo, para mim talvez fosse uma brincadeira e sentia-me bem.
Fiz a escola perto de minha casa e tinha de andar alguns quilómetros para ir e vir todos os dias, adorava a escola. Quando fiz a 4ª classe o meu pai tirou-me da escola, fui trabalhar, outros tempos. Sinto um grande vazio porque era muito esperta e queria muito estudar, mas não podíamos desobedecer aos pais. A educação familiar era muito tradicional.
Se pudesse, e olhando hoje para trás, que gostaria de ter estudado?
Gostava de ter conseguido ser psicóloga, era e é uma área que me interessa e cativa. Com a vida nunca mais se proporcionou e ficou-me este amargo. Talvez quando me reformar(risos).
Nunca é tarde. Na sua região era recorrente as crianças irem trabalhar cedo, além da mercearia também começou cedo?
Se comecei! Com 7 anos fui trabalhar para a vinhas. Eu queria ganhar dinheiro, espírito de merceeira, e convenci os meus pais a me deixarem ir trabalhar. Muito duro para uma criança e mais para uma menina, mas não dei o braço a torcer e como pedi, fui e aguentei-me. Entretanto ajudava na mercearia e ia à escola. Além disso, em alguns fins de semana, íamos às festas das aldeias vizinhas vender produtos. Também era feirante (risos). O meu pai dava-me a responsabilidade das contas e era muito boa nisso, tomei o gosto a ganhar dinheiro.
Enfrentar o mundo com a certeza de poder vencer, é uma característica atribuída às mulheres do Norte.
Nunca virei a cara às adversidades e sempre lutei pelo que quero, se for preciso derrubo o que se atravessar no meu caminho(risos). Sou determinada e focada em ter a minha independência.
Infância a recordar?
Sim. Tinha as minhas irmãs, tomávamos conta umas das outras, mais tarde chegou o meu irmão e as raparigas tomavam conta dele. Tínhamos o campo, as nossas brincadeiras eram feitas entre árvores e animais. Os meus pais eram austeros e precisávamos de ter uma cumplicidade para nos ajudarmos.
Qual a melhor ou mais marcante memória da sua infância?
As Festas de S. João no Porto. Um tio convidou-nos e foi algo de extraordinário. Aquele ambiente de festa, música, alegria, foi para mim uma descoberta magnífica. Eu sou assim, alegre, adoro festas, música, convívio, dança. Sinto-me eu, completamente eu. Foi um momento único que ficou gravado até hoje.
Entretanto vai para Lisboa.
Com 11 anos, já sem actividade escolar, fui para Lisboa trabalhar para um restaurante de uma pessoa amiga do meu pai. Lavava pratos e panelas, descascava batatas e fazia a limpeza. Uma prova duríssima. Chorei muito, era uma criança muito pequena que de repente fica sem a sua família por perto e sem conhecer ninguém. Vivia num quarto pequenino, numa cidade enorme, mas que nem podia visitar ou conhecer. Outros tempos.
A Suíça surge pouco depois.
A minha irmã mais velha já estava em Genebra, fille au pair. Entretanto soube que uma família procurava uma fille au pair e conseguiu arranjar modo de me trazer para cá, tinha 12 anos. Era longe de tudo mas tinha a minha irmã por perto.
Desde os seus 12 anos na Suíça, uma vida num mundo diferente.
Adaptei-me rapidamente. Adoro a Suíça, mas nada me demove de voltar a Portugal um dia. Este país deu-me muito, e eu também trabalhei, e trabalho, muito, nada é de borla.
Sonhos, todos os temos. Já falou de ser psicóloga, que outros sonhos tinha que tinha? Cumpriu alguns, o que lhes falta?
Os meus sonhos era ter conseguido o que consegui até hoje, ser uma mulher independente, mãe, ter saúde e trabalho para poder viver dignamente. Poder usufruir da vida, disfrutar do resultado do meu esforço, da minha resiliência e dos meus sacrifícios. Além disso sou mãe de duas meninas a quem dedico a minha vida. São a razão de tudo o que faço e toda a minha vida. Os sonhos realizam-se não se esperando que eles aconteçam por magia, temos de trabalhar muito, dedicar uma parte importante da nossa vida a tentar concretizá-los, não iremos conseguir todos, mas não me posso queixar, muito do que queria consegui e irei certamente conseguir outros.
Sente-se de alguma forma alguma injustiçada pela vida, por ter começado tão cedo a trabalhar e praticamente não ter tido infância?
Não penso muito nisso. Tenho muita pena de não ter podido continuar a estudar, a minha professora chegou a ir à minha casa pedir para que não me tirassem da escola, mas a realidade em que vivia era aquela e, portanto, aceitava da melhor maneira possível, já que tinha de trabalhar que fosse para ganhar dinheiro(risos). Hoje gosto muito de me divertir, de passear, possivelmente porque não o pude fazer enquanto criança, mas não tenho traumas, quando pude controlar a minha vida, organizei-me de maneira a conseguir realizar essas hipotéticas faltas, a realizar alguns dos sonhos que tinha enquanto criança.
A sua relação com as suas filhas tem algo da menina de Paus?
Tem muito. As minhas filhas são a minha razão de viver e sempre as incentivei a estudar, uma já trabalha, graças a Deus na área que desejava, na actividade que a completa, a outra ainda estuda e espero que também consiga realizar os seus sonhos profissionais. É muito importante conseguirmos fazer o que gostamos. Insisto bastante, sou exigente, por vezes um pouco austera, mas é a costela nortenha a funcionar, determinação e trabalho, pode demorar, mas consegue-se. Elas sabem que são a luz dos meus dias e tenho um orgulho imenso nelas. Somos muito próximas, confidentes e amigas, com as pequeninas quezílias mãe/filhas que também faz parte de tudo. Por outro lado, fazemos muitas actividades juntas, festas, música, dançar, dou-lhes liberdade para serem elas mesmo, têm a sua personalidade e temos uma relação muito cúmplice, de amor genuíno.
A sua actividade actual é na restauração.
Exactamente. Hoje trabalho na restauração, em Genebra, no Back Office. Já fiz muitas coisas, desde fille au pair a comercial de seguros, de vinho, arranjei unhas, fiz limpezas, trabalhei muito, ainda continuo, mas eu gosto de trabalhar. Sei que faço amigos com facilidade, embora hoje tenhamos de ter muita atenção, e que os clientes gostam muito de mim, é a escola da mercearia a vir ao de cima. Hoje em dia, se pudesse, gostaria de ter um trabalho relacionado com Relações Pública, acho que levo jeito.
Março foi o mês onde se comemora o Dia da Mulher, sente discriminação em relação ao facto de ser mulher?
Alguma, a sociedade ainda não evoluiu o bastante para nos colocar em pé de igualdade. É triste no século XXI ainda andarmos a reivindicar direitos iguais para as mulheres. Existem muitas barreiras a deitar abaixo, infelizmente. Nunca me senti inferior a qualquer homem, e não me sinto superior a nenhum, somos iguais de géneros diferentes, um pequeno pormenor.
Que gosta a Sandra de fazer nos seus tempos livres?
Principalmente, dormir! Sou uma grande dorminhoca, mas deve-se ao facto de trabalhar muito e de tomar conta da minha casa e da minha filha. Quando posso, vou às festas portuguesas, dançar, divertir-me, rir, gosto muito de rir. Gosto de conhecer sítios e lugares novos, outras culturas, outras gentes, o mundo tem coisas maravilhosas e nós não vamos conseguir ver quase nada. Além de tudo isso, gosto de estar com os meus amigos, recebê-los em minha casa, fazer almoços e jantares, conviver e partilhar momentos de alegria colectiva. Gosto muito de me sentir mulher, de roupa (o meu maior “pecado”), de ver filmes enrolada nas mantas, coisas normais e banais. É bom.
Ver uma mulher do Norte zangada é caso para fugir com o rabinho entre as pernas?
(risos) É melhor! Julgo que somos talvez mais refilonas, com “pêlo na venta”, como se costuma dizer, mas é o caso, dizem que quando estou zangada ninguém me atura. O Principal é não deixar nada para dizer, eu sou muito frontal e chamo a atenção directamente sem atalhos. Se estiver zangada é porque tenho razão! (risos).
Sandra, foi um prazer falar consigo, obrigado por ter aceitado o convite para este retrato de uma mulher portuguesa emigrante.
Agradecida estou eu, já sabia que era importante, mas tanto também não. (risos). A sério, foi um grande prazer poder contribuir para este vosso artigo. Quero deixar uma mensagem aos leitores da Gazeta, acreditem em vós, o mundo é magnifico, mas temos de trabalhar e, além disso, existe o amor, amar e ser amado é maravilhoso, por isso amem que mais tarde ou mais cedo a vossa metade irá aparecer.