Da ideia à prática: um percurso em várias etapas
No século XXI, o ensino de línguas afirma-se como uma prática que transcende a mera aquisição de vocabulário ou de estruturas gramaticais, e assume-se como um processo complexo que envolve dimensões cognitivas, culturais e comunicativas. Exige, assim, competências de pensamento crítico, literacia digital e consciência intercultural.
Partindo desta premissa, a CEPE-Suíça desenvolveu um projeto didático que, ao longo do ano letivo 2024/2025, reuniu professores, alunos e famílias em torno de um mesmo objetivo: promover a leitura e a literatura juvenil em língua portuguesa através da tradução, mediada sempre que pertinente, pela inteligência artificial.
Treze professores e cerca de 260 alunos, dos 12 aos 18 anos, participaram neste desafio. A proposta foi simples, mas inovadora: ler volumes da coleção Diário de uma Miúda como Tu, da escritora Maria Inês Almeida, e traduzi-los para alemão, francês ou italiano, conforme a língua de escolarização dos alunos.
A tradução como estratégia didática
O projeto assentou na ideia de que traduzir é mais do que passar palavras de uma língua para outra e que o tradutor é também re-escritor com uma voz autoral própria. Neste sentido, é um exercício de comparação, interpretação, criatividade e escrita. Ao mergulharem nesta prática, os alunos não só aprofundaram o conhecimento da língua portuguesa, como também desenvolveram a consciência metalinguística e a sensibilidade para as especificidades culturais que cada língua acarreta.
A tradução serviu também de estímulo à reflexão crítica sobre o uso de ferramentas digitais. Softwares como o Google Translate, o DeepL ou o ChatGPT foram utilizados pontualmente em sala de aula e as propostas questionadas e avaliadas numa perspetiva crítica, evidenciando a reflexão metalinguística constante dos alunos. As incoerências, desadequação ao contexto ou traduções literais erradas abriram espaço para uma análise individual e coletiva aprofundada, comparativa e contrastiva entre as línguas.
Um episódio ilustrativo ocorreu logo no início de um dos volumes, com a expressão portuguesa “Não é que me…?”. A tradução proposta pela IA revelou-se absurda, provocando estranheza nos alunos. A explicação em conjunto levou-os a compreender melhor a força da expressão portuguesa e a perceber os limites da máquina. Como relatou a professora Fernanda Santos: “A partir desse momento, os alunos deixaram de ver a IA como solução final e começaram a debater em grupo, só recorrendo à professora como último recurso.”
Resultados claros e motivadores
A avaliação realizada no final do projeto foi inequívoca: os alunos não só melhoraram as competências linguísticas, como ganharam novas ferramentas de análise, maior autonomia e motivação para a leitura. Destacamos, em particular, os seguintes aspetos:
– Maior entusiasmo pela leitura em português: muitos alunos confessaram ter lido, pela primeira vez, um livro inteiro em português sem sentir “obrigação escolar”, mas prazer e curiosidade.
– Competência crítica face às ferramentas digitais: os alunos aprenderam a usar a IA como recurso auxiliar, mas também a desconfiar, questionar e validar resultados.
– Trabalho colaborativo reforçado: a tradução em grupo promoveu a entreajuda, a discussão saudável e o respeito por diferentes interpretações.
– Valorização da língua portuguesa: o facto de traduzirem textos da sua língua de herança para a língua de escolarização reforçou o orgulho e a autoestima.
– Interação na sala de aula: registou-se uma participação ativa nas aulas, espelhada pelos vários debates sobre a língua e cultura portuguesas e uma curiosidade constante.
Encontros inesquecíveis com a escritora
O culminar do projeto deu-se em setembro de 2025, com a presença da autora Maria Inês Almeida em três encontros organizados pela CEPE-Suíça: em Lancy (Genebra), Pratteln (Basileia) e St. Gallen (São Galo).
Nestes encontros, os alunos tiveram oportunidade de dialogar diretamente com a escritora, cujos livros (ou partes de livros) traduziram. As sessões revelaram-se momentos de forte interação, nos quais os alunos colocaram perguntas sobre o processo criativo, partilharam as suas dificuldades na tradução e falaram da experiência de ler em português e traduzir para a língua de escolarização.
Em St. Gallen, a sessão decorreu na Biblioteca Katharinen, num ambiente culturalmente simbólico onde famílias, professora e alunos se reuniram na promoção e divulgação da língua e cultura portuguesas. O evento contou ainda com a presença do Senhor Cônsul Geral em Zurique, Dr. Gonçalo Motta, que sublinhou a importância da língua portuguesa como ativo cultural e profissional no futuro dos jovens. O gesto reforçou a perceção do valor social e diplomático do projeto.
A presença da autora na Suíça consolidou o projeto e selou o elo afetivo entre leitura, tradução e comunidade.
Mais do que um projeto
Em suma, este percurso confirmou que a leitura e a tradução podem ser motores de aprendizagem, quando associadas à criatividade, ao pensamento crítico e às tecnologias atuais.
Mais do que um projeto escolar, tratou-se de uma experiência transformadora que promoveu a literacia digital crítica, consolidou o plurilinguismo, aproximou culturas e incentivou os alunos a reconhecerem na língua portuguesa um património vivo e partilhado.
E, sobretudo, deixou uma certeza: a leitura, quando vivida em comunidade, tem o poder de ligar gerações, línguas e mundos.
Lurdes Gonçalves
(Coordenadora CEPE Suíça)
Sónia Melo e Cláudia Pereira
(Professoras CEPE Suíça)