Ana Lúcia Carreira, enfermeira portuguesa a viver na Suíça
“Tivemos de nos adaptar, mas tentando sempre acompanhar o melhor possível os nossos utentes”
Aos 44 anos de idade, Ana Lúcia Carreira é hoje uma portuguesa que vive na Suíça, mas que já passou por outros países e que se orgulha das suas raízes lusitanas. É enfermeira especialista em saúde comunitária e promoção da saúde. Atualmente, e em paralelo com o seu trabalho, esta responsável frequenta o Mestrado em Saúde Pública na Universidade de Medicina de Genève.
Em entrevista à nossa reportagem, Ana Lúcia Carreira falou sobre a vida na Suíça, ressaltou o papel dos enfermeiros neste momento, falou sobre o impacto da pandemia na vida dos suíços e dos portugueses residentes e revelou o seu amor pela literatura, um dos motivos pelos quais lançou recentemente um livro.
Quem é Ana Lúcia Carreira?
Difícil falar sobre si próprio… Acho que os meus amigos me definiriam melhor…. Julgo ser alguém que foi educado com valores simples, e sou profundamente reconhecida por isso. Trabalho, persistência, humildade, esforço fizeram parte da minha “construção identitária”. A liberdade, a independência e a amizade são dos valores mais importantes e talvez sejam esses os que melhor me definem.
Qual é a sua formação profissional?
Estudei enfermagem, depois antropologia e tenho vindo a especializar-me cada vez mais na área da saúde comunitária e pública. Sou de natureza curiosa e interesso-me por assuntos variados, os quais por vezes consigo conciliar na minha prática profissional.
Onde vive na Suíça?
Após dez anos no cantão de Neuchâtel, agora vivo em La Tour-de-Peilz (entre Vevey e Montreux).
E onde trabalha na Suíça?
Na Suíça, trabalho no CHUV (Centre Hospitalier Universitaire Vaudois), no Departamento de Medicina, Dispensário antituberculoso. Tenho como doentes pessoas de horizontes geográficos, sociais e culturais muito variados. Esse aspeto continua a ser um estímulo muito grande, pois consigo desta forma conciliar a enfermagem e o cuidar, mas num ambiente multicultural. A antropologia está muito presente. Facto é que cuidamos muito melhor o outro quando nos interessamos pela sua cultura, suas vivências, hábitos. Conseguimos entrar no seu Universo e criar uma ligação. Sem este elo, é difícil cuidar. E depois não somos superiores a ninguém. Podemos deter um certo saber numa determinada área, mas não nos podemos esquecer que o outro também vem com a sua “bagagem “de saberes. É dessa articulação que nasce a relação de confiança, pilar de tudo o que vem a seguir.
Como é atuar na área da Saúde na Suíça?
Não planeei emigrar para a Suíça, mas a vida trouxe-me até cá. A grande vantagem que vejo é poder conciliar a minha atividade profissional e em paralelo poder dedicar-me à minha família, viajar e ter tempo para outros interesses/paixões. Temos boas condições de trabalho e a possibilidade de trabalhar a tempo parcial é, de facto, uma mais-valia. Na área onde trabalho, tenho por vezes a sensação de continuar a trabalhar no “humanitário”, mas dando muitas boas condições ao utente. Se trabalhasse na área hospitalar (fazendo turnos) e o que já aconteceu, seria de facto, mais complicado. Aqui existe uma valorização profissional que dificilmente vemos em Portugal. Adoro o meu país, fiz todas as minhas formações em escolas públicas. A formação que recebemos em Portugal é excelente e isso abre-nos portas nos quatro cantos do mundo. Somos recebidos de “braços abertos” por onde passamos. Estamos a assistir a uma falta de mão de obra no nosso país e o Governo português já está atrasado no que diz respeito à criação de vagas, valorização salarial e progressão na carreira. Aqui temos um rácio de 17 enfermeiros por cada 1.000 habitantes. Em Portugal, temos 6 por cada 1.000 habitantes. Estes valores por si só já dizem muito.
Qual a importância do trabalho dos enfermeiros neste momento no país?
O país está muito carenciado a nível de enfermagem. Digamos que aqui cerca de 40% dos enfermeiros deixam de forma prematura o trabalho após terem exercido durante somente 4 anos (em média). Daí que se torna muito importante esta “mão de obra” vinda do exterior, a qual é muito qualificada, com facilidade de adaptação e capacidades linguísticas reconhecidas. A Suíça não forma profissionais em número suficiente e os que são formados não ficam durante muito tempo. O sistema social e cultural deste país está muito focado no papel da mulher ficar em casa e ocupar-se dos filhos. Na esmagadora maioria temos profissionais de enfermagem feminino. Assim que são mães, a escolha é rapidamente feita. Se associarmos a isto, escolas que não oferecem cantinas ao meio-dia, escassez de infraestruturas paraescolares, torna-se muito difícil para uma mulher, que, entretanto, é mãe, continuar um trabalho, por vezes bastante desgastante e com horários irregulares.
Que memórias tem dos momentos mais tensos da pandemia de Covid-19 no país? Como foi trabalhar nestas condições?
Em março de 2020, quando tudo começou, foi muito complicado… a incerteza e a insegurança eram muitas. Ninguém estava preparado. O discurso sobre o uso de máscara era incoerente. Não sabíamos como proceder às consultas presenciais e optámos, sempre que possível, pelas consultas telefónicas. Alguns colegas passaram também pelo teletrabalho. Tivemos de nos adaptar num curto espaço de tempo, mas tentando sempre acompanhar o melhor possível os nossos utentes. Julgo que o mais difícil foi lidar com uma constante e permanente mudança a nível dos procedimentos de segurança. Tenho uma amiga a trabalhar nas Urgências que me dizia isso mesmo. Quando começava o turno às 8h, tinham indicações precisas quanto ao circuito de entrada dos doentes, por volta do meio-dia, esses critérios já eram outros e, quando finalmente terminava o turno, tinha já havido outra mudança. E o cenário repetia-se a cada oito horas.
Como e quando foi viver na Suíça?
Tive uma primeira experiência em 2004, no cantão de Fribourg. Disse sempre que um dia teria de emigrar, não porque estava mal em Lisboa (muito pelo contrário), mas a curiosidade por conhecer outras realidades e outros povos sempre foi muito forte em mim. Na altura, comecei por pedir uma licença de longa duração no Hospital de São José (em Lisboa) onde já trabalhava há cinco anos e pertencia ao quadro e onde tinha boas condições de trabalho. Depois, traduzi o currículo e os diplomas para francês e comecei as candidaturas espontâneas. Quando deixei o Hospital, não tinha nenhum contrato assinado, mas confiei na Vida. De 2004, guardo a recordação dum Inverno muito rigoroso. Trabalhei seis meses e estava desejosa por ir embora. Sentia falta do sol, do cheiro do mar, falta de sair, de socializar, além de que não havia um lago perto. Aprendi a língua e este foi mais um desafio. Saí de Fribourg e fui depois para a Ilha da Córsega para terminar o ano de 2004. Sempre a trabalhar. Os anos de 2005 e 2006 passei-os em Timor-Leste. Sempre conciliei as viagens com o trabalho. A minha profissão permite esta versatilidade, exige a aprendizagem de línguas, o que é uma mais-valia. Em 2007, voltei à Suíça por razões familiares e pela proximidade geográfica com a Alemanha, a qual, na altura, era primordial para nós.
Como os portugueses viveram a pandemia na Suíça? Pode descrever?
Vivemos a pandemia de uma forma mais “leve e com menos restrições” relativamente ao que acontecia em Portugal. Falava com os meus pais regularmente e todas as restrições a nível de limitações de deslocação, aqui nunca as sentimos. Sempre pude circular no território helvético, sem ser controlada pela polícia ou justificar o que ia fazer. Havia visivelmente muito mais liberdade e a população deslocava-se como desejava. Tinha amigos em Portugal, em que apenas saía um membro para as compras e para fazer o necessário. Mostraram um comportamento exemplar. O que nos custou mais, como povo de afetos que somos, tem a ver com todas as barreiras que, entretanto, foram sendo impostas e ficámos limitados nas viagens ao país, nos contatos, nos toques.
Como profissional da área da saúde no país, o que se pode dizer sobre o estado atual da pandemia no país?
A pandemia está bem gerida, no entanto, a taxa de vacinação é bem mais baixa comparada à de Portugal ou a de outros países vizinhos. No nosso país, estamos culturalmente talvez mais recetivos à aceitação de medidas gerais e o bem comum passa antes do bem pessoal. Na Suíça, a liberdade individual é um aspeto muito importante, também refletido a nível político e histórico (democracia direta). Daí que o Governo tem de criar condições onde as vontades de todos possam ser respeitadas. Há alguns dias estive em Portugal e podemos frequentar os restaurantes e cafés sem termos de apresentar o passe. Aqui, ainda estamos longe e a apresentação do passe sanitário é exigido. A pessoa ou está vacinada ou, não estando, tem de realizar testes para provar o seu estatuto em relação à COVID-19. Hoje, o Conselho Federal, ainda tenta por todos os meios convencer algumas camadas da população a serem vacinadas.
Há muitos enfermeiros portugueses atuando na Suíça?
Eu diria que somos mais de 20 mil se contarmos as diferentes regiões linguísticas do país.
Os portugueses têm acesso a cuidados de saúde na Suíça?
Todas as pessoas que vivem no território helvético têm obrigatoriamente de ter um seguro de saúde. Nesse sentido, todas as pessoas pagam as suas quotas e desta forma todas podem aceder à saúde. O sistema de saúde é muito diferente do português, onde temos o serviço nacional de saúde. Um português que cá esteja há pouco tempo e que não se tenha informado, vai estranhar muito tudo o que se tem de pagar na área da saúde. Estando saudável ou doente, as quotas mensais são obrigatórias para todos.
Como é viver na cidade onde está?
Vivo numa zona calma e a cerca de dez minutos a pé do lago Léman. Como portuguesa, e tendo a praia a proximidade, o contato com a água é para mim muito importante. Digamos que contribui para o meu equilíbrio e bem-estar. O maior bem que tenho é o tempo. Este é-me dado graças à possibilidade de trabalhar a tempo parcial. Vivemos numa zona privilegiada e paisagisticamente muito bonita. Julgo que não há nenhuma fotografia que possa fazer jus à beleza desta região. Tenho amigos suíços, franceses e alguns portugueses. Estou bem integrada e participo nas atividades sociais da região.
De onde é natural em Portugal?
Nasci em Lisboa e passei a minha infância e adolescência no campo, no concelho de Sobral de Monte Agraço. Estudei depois em Torres Vedras, antes de me instalar na capital, de onde saí com 23 anos.
Vive na Suíça com a sua família? Tenciona regressar um dia?
Da minha família, nunca ninguém emigrou. Todos vivem em Portugal. Eu fui a única a sair. Aqui, vivo com o meu marido (franco-alemão) e os nossos filhos. Tenho muita vontade de voltar em breve. Gostaria muito de um dia poder vir a trabalhar na saúde pública do meu país e pôr ao seu dispor as competências que, entretanto, fui desenvolvendo.
Como a literatura entra na sua vida?
Penso que tive uma infância bastante boa. Fui criada com os meus avós maternos, no campo, rodeada de natureza, animais e de muita liberdade. Sou filha única e, desde que me lembro, sempre gostei de ler, sempre andei com livros. Os livros sempre foram uma muito boa companhia. A minha professora do ensino primário também teve um papel de muito destaque nesta minha relação com a literatura. Com frequência oferecia-me livros infantis. Às vezes, chego ao cúmulo de ter os mesmos livros em português e em francês, porque, entretanto, me esqueci que já tinha comprado uma versão portuguesa.
O que significa escrever?
Escrever é uma lavagem, uma limpeza, uma terapia se calhar… da Alma passa para o coração e depois para o braço e aí fica no papel. Em alguns períodos da minha vida, escrever ajudou-me muito a manter a cabeça à superfície da água, por assim dizer…
Que livro lançou recentemente?
Recentemente, lancei um livro de Crónicas. Intitula-se “Crónicas do Oeste”. Queria deixar um testemunho aos meus filhos. Quero que eles conheçam e se orgulhem das minhas raízes. Queria que eles conhecessem as nossas origens, soubessem de onde vieram e como eram os seus antepassados. É esse o património que tenho para lhes deixar. Saber de onde viemos ajuda-nos a compreender onde estamos, porque estamos, quem somos, porque somos… desta ou de determinada maneira. É o legado que lhes deixo.
Onde lançou?
Na Editora Cordel de Prata: https://cordeldeprata.pt/livraria/cronicas-do-oeste/
Qual o tema?
Histórias, crónicas, episódios, retalhos e remendos de uma vida. Da nossa vida, da nossa família.
Tem outros livros lançados?
Participei numa antologia de literatura livre onde publiquei um texto sobre a Liberdade, na Chiado Books. Tenho “na gaveta” crónicas dos dois anos em que vivi e trabalhei em Timor-Leste e onde inclusive fui mãe pela primeira vez. Momentos muito fortes…
Ígor Lopes