Uma obra pedagógica certamente, mas sobretudo uma porta de entrada para cada um de nós no mundo riquíssimo de carateres e tipos tão divertidos do teatro de Gil Vicente. O facto de ainda hoje as peças de Gil Vicente serem encenadas regularmente nos teatros portugueses provam o caráter universal e intemporal deste autor. Pessoalmente estou ainda encantado com a interpretação de Maria do Céu Guerra na peça o Pranto de Maria Parda encenada em Genebra em 2010. Esta peça mostrou a força cénica e a convicção duma das maiores atrizes portuguesas. Só o teatro e/ou a vida permitem chegar a esta perfeição.
É necessário a reapropriação dessas obras e este formidável romance é uma maneira de não deixar morrer uma parte do património do teatro português que ainda hoje tem o propósito de nos fazer viajar e refletir. Não mudámos muito. O amor e o humor pertencem sempre aos valores mais essenciais para progredir nesta “oportunidade de aprendizagem e de descoberta – de si e dos outros”, segundo as próprias palavras de Catarina Barreira de Sousa.
Como nasceu a ideia deste livro, deste romance sobre Gil Vicente?
A ideia do livro sobre Gil Vicente nasceu precisamente durante o meu mestrado de espanhol aqui na Suíça. No quadro deste master estudámos o teatro espanhol do século XVI. E um dos autores que estudámos foi também Gil Vicente. Fiquei muito admirada com a obra de Gil Vicente que escreveu perto de um terço das suas obras em espanhol. Ele escreveu 44 peças e 11 estão escritas em espanhol, umas são também bilíngues. Eu achei isso tão interessante que eu decidi estudar espanhol na obra de Gil Vicente. No final tive de escrever uma tese e assim surgiu a ideia deste livro sobre Gil Vicente.
Não foi fácil a leitura dessas obras?
Não foi uma leitura fácil devido ao facto de estar escrito num português do século XVI, com referências às personalidades históricas, com um vocabulário que já não se usa, os tais arcaísmos. Mas não deixa de ser muito interessante porque Gil Vicente era um humanista, tinha uma visão muito crítica da sociedade, um olhar muito observador, uma sátira cheia de humor, fez um retrato da sociedade daquela época e criou tipos universais e que ainda hoje existem, como o juiz corrupto ou o padre leviano. Através das personagens vai criticando a sociedade.
Antes deste livro, também escreveu uma peça de teatro?
No quadro do meu trabalho também escrevi uma peça dedicada à obra de Camões, uma peça de teatro para jovens de 12 e 13 anos. Uma peça que escrevi para os meus alunos, uma homenagem a Luís Vaz de Camões por ocasião do Dia de Portugal.
Camões e Gil Vicente são dois génios diferentes, um na epopeia, na poesia, o outro no teatro. A vantagem para abordar Gil Vicente é que este autor escreveu muitas peças pequenas que se podem ler facilmente, só fica a dificuldade da linguagem. Há obras que são estudadas em Portugal, no nono e no décimo ano e são muito divertidas. É preciso uma outra maturidade para ler e estudar Camões.
Para alguns, Gil Vicente foi um “Molière avant la lettre”. Molière também foi um crítico da sociedade através do humor.
Precisou de Alice para escrever o livro?
Quando li as peças todas, senti que havia algumas peças de teatro que podiam ser exploradas e transmitidas aos alunos, mas não só. Imaginei como poderia fazer um género de viagem revisitando o teatro de Gil Vicente, mas uma viagem ligeira. Imaginei uma personagem que podia saltitar de peça em peça e durante essa viagem pudesse conhecer outras personagens, alguns quadros. A ideia aparece assim. A primeira personagem que me surge não é Alice mas o Sr. Parvo. Porque esta personagem intervém em várias peças e tem a particularidade de ser muito livre de espírito, muito crítica, não tem filtro, mas é muito autêntica, vê muito mais para além das aparências. Eu gostei muito disso. Este Sr. Parvo podia-nos levar através do mundo de Gil Vicente. Mas para fazer esta viagem tinha de ter um passageiro, um viajante. Quem é que vai entrar neste mundo? Pensei que era interessante ser um ou uma adolescente porque tem um olhar um pouco mais natural e curioso. Foi muito mais fácil para mim porque eu tinha de criar um primeiro contacto duma personagem com Gil Vicente. Sendo uma jovem que está no nono ano a estudar o Gil Vicente, o pretexto era muito mais fácil. Suscitar o interesse através de Alice porque até hoje Gil Vicente tem uma identidade muito misteriosa.
Não há uma biografia de Gil Vicente?
Não é possível existir uma biografia dele porque não há documentos, não há nada. A única forma de conhecer Gil Vicente é através das peças dele. Não sabemos precisamente quando foi que ele nasceu. É pena os seus filhos não terem escrito nada sobre a vida do pai.
Até à data não se descobriu nenhum documento sobre isso. No meu livro fala-se da possibilidade de descobrir um documento novo para esclarecer tudo isso. É isso que diz a professora no meu romance para estimular a curiosidade dos alunos.
Este livro está integrado no seu ensino na Suíça?
Não temos obras obrigatórias. Os alunos no secundário têm de ler uma obra literária. Não me sinto à vontade para lhes dizer “leiam o meu livro”. Eu dou a liberdade de escolha.
Porque não fazer uma série de Alice, Alice no país de Camões, etc.?
Já me fizeram essa pergunta. O meu estímulo para escrever este livro não se limitou a uma viagem ao mundo de Gil Vicente. Houve uma intriga que me surgiu muito rapidamente, o facto de Alice acordar no cenário do Auto da Barca do Inferno, que é muito famoso, em que as pessoas depois de morrerem acordam e estão desesperadas porque querem ir para o paraíso e acabam por ir para o inferno. Eu imaginei que Alice acorda neste cais e fica completamente perdida. Como é que ela vai sair deste mundo? Este livro surgiu-me de uma forma tão intensa. O objetivo não é só transmitir a obra dum escritor. O objetivo é de criar uma história forte que dá vontade de ler o livro. Porque senão torna-se um livro demasiado didático.
Mas há também um lado pedagógico, principalmente para os adolescentes?
Foi o objetivo e foi inevitável. E o objetivo também era apresentar enxertos das peças. Eu fiz um esforço enorme para poder mantê-los no texto original. São 21 peças citadas no livro.
Qual é o seu auto preferido?
Adorei a Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra. Porque é uma versão já bem mais antiga de A Bela e o Monstro. Uma versão ibérica. O monstro é o famoso Monderigon, o monstro da serra que depois se transforma no rio Mondego. Gostei do Auto da Sibila Cassandra com uma personagem muito feminista para a época: uma mulher que não quer casar, quer ser livre. E também do Nau d’Amores. Imagine uma nau que em vez de partir para a Índia à procura de riqueza é uma nau que parte à procura do amor.
Gil Vicente utiliza sempre o humor para transmitir uma mensagem. Fez um retrato da sociedade de Lisboa da época, usa a vertente cómica para retratar a sociedade.
Para encomendar o livro – www.wook.pt (pesquisar “Alice no País de Gil Vicente”)
Clément Puippe