Numa tarde de verão antecipado, encontrámos o cineasta Rui Nogueira numa meritória e singela homenagem, na presença de dezenas de portugueses que se juntaram para ouvir a riquíssima história de um compatriota de relevo na cena cultural genebrina, no mundo do cinema europeu e mundial.
Figura reconhecida entre os seus pares, crítico reputado, jornalista e cineasta, percorreu a sua história de vida dedicada ao cinema, num clima de conversa entre amigos, no cenário de uma mesa redonda organizada pelo Consulado Geral de Portugal em Genebra, conduzido por Ilídio Morgado e com as intervenções de Priscilla Frey, produtora, e Sofia Borges, académica e investigadora na área da cultura portuguesa, a conversa foi em clima informal e bem-humorada, onde Rui Nogueira contou, com a sua sapiência, os momentos marcantes da sua extensa carreira, desde o despertar do seu interesse pelo cinema em Moçambique, com um casal de enfermeiros que lhe abriram os horizontes da sétima arte, às dificuldades que o regime de Salazar o fez passar, e que levaram à sua partida para Paris, onde desenvolveu a sua extraordinária capacidade de “ler” filmes, que culminou com a direção do Centre d’Animation Cinématographique, em Genebra durante 33 anos.
Perante uma audiência atenta, composta por cerca de 60 pessoas, o cineasta foi questionado sobre diversos temas, incluindo a evolução do cinema até aos dias de hoje, o lugar do cinema português no panorama internacional e o seu impacto junto das comunidades portuguesas no estrangeiro, nomeadamente sobre a fraca disponibilidade de cinema português nas salas suíças.
Rui Nogueira conversou, contou histórias e transmitiu uma ínfima parte da sua inestimável experiência cinematográfica.
Rui Nogueira, nome reconhecido internacionalmente e „pouco“ conhecido pela comunidade, alguma explicação?
Nada de especialmente relevante, a minha área de intervenção é muito específica e discreta, porventura nunca se aperceberam da minha presença pela minha postura longe de holofotes, trabalhando e contribuído numa área fora das normais, julgo que é isso.
Viver, ler cinema, é algo de especialmente introspectivo ou necessitamos de conhecimento técnico especial?
É tudo muito subjectivo, evidentemente. A minha paixão pelo cinema é sobretudo pela limpidez das histórias, pelas nuances de cada realizador, as ideias que vingam e são transversais, intemporais. Hoje fazem-se repetições de grandes êxitos do passado com abordagens muito distintas e fora dos contextos originais, quase nunca resultam porque produtos vencedores resistem no tempo e são imutáveis a novas roupagens, depois há quem goste ou não, a tal subjectividade que comanda.
Como recebeu esta ideia de ser homenegeado pelos seus compatriotas em Genebra?
Primeiro com alguma surpresa. Na minha idade quero paz e tempo para ver os meus filmes, todos os dias, mas fico muito honrado e sensibilizado pela iniciativa e espero que contribua para que a comunidade se dedique a outras artes e tenha atenção especialmente ao cinema. Aproveito para agradecer à Dra Leonor Esteves pela lembrança.
Tem um trajecto de vida que se cruza com os anos dourados da 7ª Arte. Nunca realizou um filme, mas no seu percurso, construiu uma história tão rica que pode inspirar um guião para cinema. Rui Nogueira é o homem cuja existência se funde com a história do cinema e deu a descobrir o melhor da produção cinematográfica ao servir de elo entre protagonistas e espectadores.
Conheceu os grandes do cinema, realizadores, produtores e actores, conviveu e ajudou a crescer uma indústria que hoje é uma máquina de um valor incalculável. Sente ter feito parte da história do cinema tal qual o conhecemos hoje?
Convivi de perto com os grandes, europeus e outros, nomeadamente americanos, o Martin Scorsese leu o meu livro e já o referiu bastante ao longo da sua carreira, conheci de perto Manoel de Oliveira. Otto Preminger, Samuel Fuller, Nicholas Ray e William A. Wellman estão entre aqueles que enquadro na classe de os mais belos encontros, assim como Truffaut, e personalidades como Raoul Walsh, Henry Fonda, Frank Capra, Edward G. Robinson, Gene Kelly, Faye Dunaway, Gloria Swanson, Stephen Boyd e Charlton Heston.
Eu cresci não com a Branca de Neve ou algo assim. Tinha 7 ou 8 anos quando ouvi estas histórias. E quando vi o primeiro filme já conhecia os atores, já conhecia tudo. O primeiro filme que me lembro de ver foi o Corsário Negro, do Chano Urutea, com o Pedro Armendariz. Tive a felicidade de me cruzar com gente extraordinária, génios e lunáticos, de são e de louco todos temos um pouco.
A sua história desavinda com o regime de Salazar precipitou a sua ida para Paris e posterior entrada definitiva no mundo do cinema. Chegado a Lisboa no dia da Implementação da República foi apanhado numa manifestação contra o regime e preso. Solto, mais tarde, como gosta de contar, foi apanhado por ficar parado, “se na primeira corri porque todos corriam, na segunda fiquei parado e fui novamente preso, por isso escapei e busquei melhor sorte em Paris. Aí escrevi para revistas e mais tarde na Cinemateca Francesa, daí começou a minha maior história, o amor ao cinema”.
Do cinema português o que pode nos contar?
Como todos sabem, os governos de hoje e de outrora nunca morreram de amores pelo cinema, sobrevive graças a realizações com parcerias e pela carolice de muitos cineastas e produtores.
Entre 1974 e 1976, ocupei-me da difusão e divulgação do cinema português no mundo. Houve 17 ou 20 prémios para o cinema português enquanto me ocupei dele. E, está claro, os cineastas premiados estavam convencidos que eram génios e que não precisavam de mim, enquanto os não premiados diziam que eu não os ajudava e só ajudava os outros. Por exemplo, Manoel de Oliveira sempre foi um grande senhor, outros nem tanto. Gostava muito do João Botelho, acho que fez filmes muito bons. Eduardo Geada, menos, mas muito simpático. Acho que se faz cinema de qualidade em Portugal e que deveriam apostar mais na divulgação e promoção além portas, prémios recentes indicam que se pode trilhar um bom caminho.
Que é para si o cinema?
Paixão. Amor. Tudo. A minha falecida esposa ajudou-me durante muitos anos sabendo que “competia” com esta minha entrega, sem ela nunca teria feito o que fiz e muito a ela devo. E quero deixar uma mensagem, venham ao cinema, cinema em salas, não os produtos alimentados a ilusões sem grandes histórias ou intuições. Hoje há uma proliferação de centenas de filmes sem conteúdo, ocos, vazios, uma praga de consumo imediato para deitar fora e que não ficam na memória. Venham ao cinema e sejam criteriosos e críticos, só assim se pode evoluir.
Ilídio Morgado