Realmente é um acontecimento importante esta Cátedra, com a expectativa de que uma nova dinâmica seja orientada para o bem da língua portuguesa na Suíça, reflexo da abertura de Portugal no estrangeiro e uma demonstração da personalidade e do reconhecimento ainda maior da obra literária de Lídia Jorge.
No dia 15 de Setembro, no quadro de um colóquio internacional de dois dias organizado pelas professoras universitárias Nazaré Torrão e Maria Graciete Besse, sobre “o poder da imagem na obra de Lídia Jorge” e na sequência de um protocolo assinado entre o Instituto Camões e a Faculdade de Letras da Universidade de Genebra, foi inaugurado oficialmente a Cátedra Lídia Jorge na presença da escritora, do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, do Presidente do Instituto Camões, Embaixador João Ribeiro de Almeida, do Embaixador de Portugal em Berna, António Ricoca Freire, do Cônsul Geral de Portugal em Genebra, Bruno Paes Moreira, da Coordenadora do Ensino Português na Suíça, Maria de Lurdes Gonçalves, bem como dos diretores da Faculdade de letras de Genebra, Jan Blanc, e do Departamento de línguas e literaturas românticas, Abraham Madroñal e de professores e especialistas na obra de Lídia Jorge.
A professora Nazaré Torrão responsável pela Unidade de Português da Universidade de Genebra, assume o cargo de diretora da Cátedra Lídia Jorge que tem interesse estratégico pela presença de Portugal e da língua portuguesa no mundo, como referiu o Ministro dos Negócios Estrangeiros.
O Ministro Augusto Santos Silva discursou (num francês impecável) sobre a imagem de Portugal na obra de Lídia Jorge. A escritora ficou muito emocionada por esta intervenção brilhante que a própria escritora qualificou de “memorável”, uma comunicação que demonstrou da parte do Ministro um conhecimento profundo da obra da escritora. É de realçar este interesse e conhecimento pela literatura, certamente um exemplo a seguir para muitos políticos.
A Cátedra Lídia Jorge constitui a 54.ª Cátedra da rede que o Camões, I.P., vem criando em parceria com instituições de ensino superior em 22 países.
Durante dois dias sucederam-se intervenções de especialistas e professores de várias universidades portuguesas e de algumas grandes universidades de todo o mundo (Sorbonne, Oxford, Warwick, Minnesota, Massachussetts, São Paulo, Zurique e Genebra) em regime presencial ou à distância. Este conjunto de intervenções e a paixão de cada interveniente permitiu medir a importância, a qualidade e o interesse da obra de Lídia Jorge ao nível internacional.
Breve biografia
Lídia Jorge nasceu em 1946 em Boliqueime (Loulé) numa família de agricultores. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi professora do Ensino Secundário e ensinou alguns anos em Angola e Moçambique durante o último período da guerra colonial.
A sua carreira docente realizou-se maioritariamente em Portugal. Iniciou a sua atividade literária com a publicação do seu primeiro romance, “O Dia dos Prodígios” (1980) e tornou-se rapidamente uma das vozes mais importantes da literatura portuguesa e do romance.
“A Costa dos Murmúrios” (1988) – adaptado ao cinema por Margarida Cardoso – conta a sua experiência na África colonial, e confirma o seu lugar de destaque no panorama literário português. Foram-lhe atribuídos inúmeros prémios, nomeadamente o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000) e ultimamente o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas de Guadalajara (2020). Podemos citar alguns romances que marcaram a sua carreira como “O Cais das Merendas” (1982), “O Jardim sem Limites” (1995), “O Vale da Paixão” (1998), o seu romance mais premiado, “O Vento Assobiando nas Gruas” (2002) que Lídia Jorge destaca sempre, “Os Memoráveis” (2014) e “Estuário” (2018), o seu último romance.
É só em 2019 que Lídia Jorge publica o seu primeiro livro de poesia, “O Livro das Tréguas”.
Em 2020 reuniu no livro “Em Todos os Sentidos” um conjunto de quarenta e uma crónicas que Lídia Jorge leu aos microfones da rádio, na Antena 2. Crónicas que revelam sempre o seu olhar crítico: “Como não podemos vencer o Tempo, escrevemos textos que o desafiam a que chamamos crónicas.”
A sua obra conta com 12 romances, 2 peças de teatro e algumas coletâneas de contos e livros de literatura infantil bem como 1 volume de poesias e outro de crónicas.
Entrevista
a Lídia Jorge
e a comunicação do dia 15
de setembro de 2021
Sobre as cátedras e o colóquio…
Eu pensava que as cátedras eram só atribuídas a pessoas que já não estivessem cá nesta vida. Aconteceu que me apresentaram a situação de uma maneira diferente dizendo que queriam reforçar com al-gumas pessoas que pudessem dar o seu testemunho vivo para poder tornar mais dinâmico o arranque de algumas cátedras e que portanto estando a pessoa ainda ativa e ainda a produzir poder-se-ia criar uma dinâmica de aproximação entre a língua portuguesa e as suas várias vertentes e entre os estudantes suíços. (…).
Estou também muito surpreendida com a altíssima qualidade das comunicações.
Estamos num tempo da pandemia, e muitos dos grandes professores universitários insistiram sobre a dificuldade de trabalhar neste tempo. No entanto, vieram sobretudo professores jovens, de grande qualidade.
Pode-nos falar da responsabilidade ética da literatura?
Eu considero que a literatura é uma disciplina ética, mesmo quando parece que não. O que faz a literatura? A literatura fala em geral em frente ao mal e “desoculta” as aparências e nessa medida a literatura tende sempre para a criação de um novo futuro e a criação de laços de fraternidade entre seres humanos. Não há escrita, não há nenhum escritor que quando escreve honestamente não faça isto. Há escritores que deixam isso mais patente, outros menos. As pessoas dizem sempre que a minha escrita é ética. Talvez eu deixe isso patente. É uma escrita também poética e estética. Talvez que nos meus livros o traço da compaixão seja muito presente, a compaixão por os que não têm, a compaixão por os que se deslocam, por os que são diminuídos, por os que se querem expressar e não conseguem, aqueles que são perseguidos pela burocracia, os perseguidos sobretudo pela pobreza. São temas que me tocam, os meus livros falam bastante disso, sendo o universo português um universo que teve uma diáspora dupla: uma diáspora de pobres, tivemos uma diáspora de pedintes por um lado, e tivemos por outro lado uma diáspora de colonos, que é contrastivo, estranho, mas isso é o cerne da nossa complexidade. Enquanto fomos um país pobre à mercê dos outros, por outro lado fomos um país que perante os povos que colonizámos eramos altivos. Essa perspetiva dupla faz da cultura portuguesa uma cultura que tem elementos para oferecer à Europa. Nós temos experiência para a Europa.
Sobre a palavra superação…
A palavra superação é talvez a mais importante, porque é aquela que ultrapassa os níveis de resistência. Resistir é imprimir um nível de força contra a opressão, mas a superação tem a ver com o próprio triunfo da pessoa enquanto indivíduo que fica além do ressentimento, supera-se a si e supera a sua condição humana.
Sobre a vida e a morte…
Não se sabe nada sobre a vida enquanto não se sabe pelo menos alguma coisa sobre a morte.
Enxertos da intervenção
de Lídia Jorge
Agradecimentos
Insistiu sobre a comunicação memorável do Ministro Augusto Santos Silva. “Sei que nesse nosso campo não há dívidas, mas há reconhecimento. Fico muito grata. Muito obrigada. De igual modo agradeço a presença do Senhor Embaixador João Ribeiro de Almeida do Instituto Camões. Sinto-me reconhecida pelo facto do Instituto Camões ter assinado um protocolo de acordo para mais uma cátedra que sirva para continuar a difundir novas culturas e dar a conhecer entre os estudantes suíços o imaginário e a história dos povos que falam a língua portuguesa.”
Falando do Embaixador António Ricoca Freire, Lídia Jorge referiu que na cadeia de ações que conduzem a uma realização como esta, por vezes o entusiasmo de alguém faz a diferença entre o im-
possível e o possível.
“A professora Nazaré Torrão para o papel singular que representou neste processo. Agradeço vivamente o empenho, o esforço e a determinação.(…) Quando Nazaré Torrão me falou pela primeira vez da hipótese de uma cátedra em meu nome (…), parece que falámos de uma espécie de sonho da madrugada. Afinal, graça à sua persistência realizou-se.”
Uma espécie de família
“Neste momento de quase intimidade pelo facto de estarmos em número reduzido, creio que formamos um grupo, uma espécie de família que nos aproxima e que por certo nos une à volta da mesma ideia de que a literatura é um elemento fundador da liberdade e da dignidade humana.”
O lugar da Suíça para Lídia Jorge
“As culturas fazem entre si transfusões de sangue e são mais vivas quanto mais trocas proporcionam entre si. A Suíça apresenta um legado que chegou até nós. Basta falar do ideal político de Benjamin Constant ou da figura irradiante, fundadora do pensamento moderno, Jean-Jacques Rousseau, de Hermann Hesse ou de Blaise Cendrars.
Mas por meu lado, desde alguns anos, quando penso na Suíça, ouço sobretudo a voz de Agota Kristof a ler em voz alta para um reduzido grupo de ouvintes um diálogo entre duas crianças magiares, falando do desentendimento e da penúria das suas vidas enquanto emigrantes nesta terra. No final as pessoas aproximavam-se da Agota para lhe agradecerem. Na verdade, foi inesquecível o potencial de verdade que Agota colocou naquela narrativa, e no som da sua própria voz. Ali, em conjunto, tínhamos vivido aquilo que a literatura pode fazer de melhor, criar uma clareira no meio da penumbra”.
Objetivo de uma cátedra
“É isso que eu penso que uma cátedra integrada nos estudos lusófonos pode fazer na Universidade de Genebra: ajudar a multiplicar os diversos níveis de clareiras de entendimento dando a conhecer outras formas de pensar e viver.
O mundo global em que vivemos precisa de viagens feitas nos dois sentidos.”
O poder da imagem
“Este colóquio tem por tema o poder da imagem, é um tema que diz respeito ao presente, que diz respeito à construção da nossa humanidade.”
Lídia Jorge convocou vários escritores contemporâneos para estabelecer novas constelações, referindo-se ao livro de César Aira, o escritor argentino que escreve livros breves que valem por vários livros longos.
Ela falou do ensaio “Las noches de Flores” para uma demonstração sublime e metafórica de construções de novas constelações. Este ensaio passa-se durante o período
da grande crise económica por volta de 2010 na Argentina com dois reformados que assistem à degradação da sociedade. Os habitantes constataram que os astros mudaram de posição.
A sugestão produzida por essas imagens pode alterar a forma de ver o mundo que nos rodeia.
“Involuntariamente faço exercícios mentais de subversões”. Lídia Jorge cita vários livros contemporâneos para estabelecer uma nova nomenclatura do céu, novas imagens: José Saramago e a “Jangada de Pedra” (com a força de atração e de repulsão), Mia Couto e “A Confissão da Leoa” (com a insignificância de vários milhões de seres humanos esquecidos e abandonados à sua sorte em várias regiões do planeta), Ana Margarida de Carvalho e “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato” (com a palavra conciliação e perdão que deve ser mais alta que o ressentimento) e também Ignácio de Loyola Brandão e “Desta terra não vai sobrar nada, a não ser o vento que sopra sobre ela”, Hélia Correia e “Um Bailarino na Batalha” e Paulina Chiziane e “Balada de Amor ao vento”.
“Porque o anúncio da fábula literária em última instância, mesmo quando anuncia o mal por um processo de oximoro, aponta para uma saída, para a felicidade, para o bem. A literatura é no seu conjunto uma declaração de que só somos seres criados à mercê da ideia de que existe uma casa para o bem.”.
Texto e entrevista Clément Puippe