O festival “A Arte de Ser Migrante” reuniu academia, artes e media para discutir a invisibilidade dos/as migrantes portugueses/as na historiografia e no discurso público em Portugal e, mais recentemente, nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.
É para nós um verdadeiro desafio descrever em poucas palavras o que foi o festival “A Arte de Ser Migrante”, no momento em que encerramos um evento que foi de grande intensidade para todas as pessoas que passaram pelo Jardins do Bombarda, em Lisboa, entre 3 e 6 abril de 2025. Ao longo destes quatro dias, 25 artistas, investigadores/as e jornalistas, muitos deles vindos de França, Luxemburgo e Suíça, participaram de alma e coração naquilo que consideraram ser “um espaço de expressão, de grande liberdade e de acolhimento”.
O festival reuniu pessoas cujas vidas são atravessadas pela migração. Elas próprias, os seus pais ou avós saíram de Portugal no século passado. Em abril de 2025, fizeram a viagem em sentido contrário, movidas por um mesmo desejo de quebrar o silêncio, tomar a palavra e desvendar os não ditos sobre a experiência do exílio e da migração. “Havia uma necessidade imperiosa de reconstituir o caminho do exílio; de voltar atrás no tempo e reconstituir a viagem da minha família através de uma ditadura muito longa”, sublinhou a escritora e jornalista Charlotte Frossard, neta de Quentin e Isabel de Barros, exilados em La Chaux-de-Fonds no início da década de 1960. O filme de Christophe Fonseca – “Au delà du silence – Além do silêncio” – assinala igualmente a necessidade imperiosa de ouvir vozes da geração mais velha, antes que ela desapareça e, com ela, as suas memórias.
Reparar e reconciliar foram duas das palavras-chaves dos debates e conversas em torno dos livros de Madeleine Pereira, Charlotte Frossard, São Gonçalves e Ana Cristina Pereira, dos filmes de Melanie Pereira e Christophe Fonseca, e da exposição de Pedro Rodrigues. Resgataram-se memórias e expuseram-se feridas ligadas aos traumas da migração, mas também se falou das mágoas que alguns filhos e filhas de migrantes sentiram ao crescer em sistemas escolares que os consideravam estrangeiros, mesmo quando haviam nascido no país de residência. Questionaram-se estereótipos tenazes – tais como a pilosidade das portuguesas -, discutiram-se temas como os complexos de falar português com sotaque, abordou-se a (fraca) receção em Portugal das obras (literárias) produzidas no estrangeiro. Questionou-se quem tem legitimidade para falar sobre as e os migrantes e seus descendentes e da importância da auto-representação, isto é, dos próprios produzirem narrativas sobre si e as suas famílias.
Os trabalhos sobre migrantes portugueses também se refletem na atualidade da sociedade portuguesa. Um exemplo disso é o projeto visual “Bom dia Zermatt”, do fotógrafo Pedro Rodrigues, que evidencia a precariedade das condições de trabalho e a invisibilidade dos trabalhadores do setor do turismo, considerados, no entanto, essenciais. Outro exemplo é o filme de Melanie Pereira, “As Melusinas à Margem do Rio”, que discute o tema da mobilidade social das filhas e filhos de migrantes.
A desocultação não se limita à capacidade de dizer, ver e ouvir, mas estende-se também aos objetos. Na sala da exposição participativa “Traz um objeto também”, pode ver-se um quadro com o desenho de Armando Alves, intitulado “Emigrante: unidos venceremos”, elaborado em 1975 no âmbito das iniciativas de ação cívica do Movimento das Forças Armadas, que sublinha o papel dos portugueses emigrados na democratização de Portugal. A exposição incluiu também uma guitarra portuguesa vinda da Suíça, correspondência e fotografias de família, cassetes de música que se ouviam nas viagens de carro para Portugal, entre muitos outros objetos e documentos históricos.
O festival não serviu apenas para libertar a palavra sobre traumas que afetam várias gerações e que, até hoje, têm encontrado pouco eco, tanto nos países de residência como em Portugal. Foi igualmente um espaço de conexão e celebração da diversidade, um espaço onde couberam as histórias de quem saiu, mas também as histórias de quem escolheu Portugal para viver: “Sinto-me bem aqui, porque se fala de migrações”, disse uma participante (sem origens portuguesas) a viver em Lisboa desde 2018. E outra participante que passou pelo recinto do festival neste primeiro fim de semana de abril acrescentou: “Não tenho ligação à migração portuguesa, mas acho que isso tocava todas as fibras de migrante que existem em mim!”
A partilha de experiências singulares, mas comuns, criou conexões fortes entre quem esteve presente vários dias ou apenas umas horas neste evento singelo. Organizar este festival no coração de Lisboa foi um gesto simbólico e político. Ao longo dos quatro dias, entre 250 a 300 pessoas passaram pelo festival — portugueses/as, migrantes, estudantes, curiosos/as — criando novas ligações humanas, trocas de experiências e pontes entre memórias passadas e futuros possíveis.
Liliana Azevedo e Amandine Desille, (organizadoras do Festival)