Não sou socióloga, mas tenho-me interessado pela representação da identidade nacional na literatura ao longo do meu trabalho.
Uma coisa é analisar como é representada a identidade nacional num texto literário, outra é teorizar sobre a mesma. Pareceu-me que o objetivo do encontro seria refletir sobre o futuro da comunidade portuguesa na Suíça e sobre a função das associações nessa discussão e
que a minha conferência seria uma espécie de ponto de partida para as várias discussões que teriam. Sendo assim, pareceu-me que seria mais útil discutir o que é a identidade.
A identidade é um tema recorrente de que se ouve falar mais ou menos segundo a atualidade. A guerra na Ucrânia fez o tema surgir de novo na imprensa e nas discussões: há
uma identidade ucraniana ou ela deve ser integrada na identidade russa? Para ambas as hipóteses os contendores vão buscar argumentos à história, à língua falada, à religião praticada, ao território uma vez partilhado. Nenhum destes fatores por si só ou mesmo reunidos pode
definir a identidade. Por exemplo, o presidente Zelensky vem de uma família que esteve perfeitamente integrada na União Soviética, uma outra forma do império russo (o avô foi coronel do exército vermelho), os pais são originários de uma região onde se falava russo, o russo era a sua língua em família e é judeu e não cristão ortodoxo. A pergunta – a identidade ucraniana é uma identidade nacional própria ou deve ser integrada noutra maior, na russa,
como uma identidade regional – indica que se pode pensar que uma identidade pode não excluir a outra se estiverem em níveis diferentes: a nacional englobando a regional, a
identidade russa compreendendo em si a ucraniana, entre outras. O exemplo do presidente Zelensky – diferentes identidades linguísticas e religiosas daquelas que são as dominantes do grupo maior, a maioria dos ucranianos – não o impedem de se sentir ucraniano e de ser visto pelo seu povo como tal. Isto revela outras características da identidade nacional: pode integrar
em si elementos ou grupos de indivíduos que não convergem em vários aspetos com a identidade do nível superior – ser ucraniano – mas apenas em alguns. Há no entanto um ponto essencial: sentir que se faz parte desse todo e ser visto como fazendo parte desse todo, ser
reconhecido pela comunidade como um membro da mesma. Isso nem sempre é pacífico ou fácil, mas é uma realidade: as sociedades são compostas por grupos que se diferenciam (pela cor da pele, pela classe social, pela religião, pela região de que são originários, pelo modo de falar), mas há apesar de tudo algo que une e liga essas
diferentes comunidades que têm vários pontos em comum e vários que as afastam. Todos se sentem fazendo parte dessa sociedade. O problema é quando a sociedade não os vê como fazendo parte dela e, nesse caso, temos problemas de segregação.
Problema que quem vive no estrangeiro conhece bem. Tanto no país de origem, onde por vezes lhes é mostrado que não fazem inteiramente parte do grupo maior – são portugueses, mas são portugueses emigrantes; falam português, mas por vezes um português um pouco diferente do que é falado em Portugal –, como no país de acolhimento: quando se quer fazer parte do grupo maior, no nosso caso o dos suíços, por vezes há linhas de fronteira
invisíveis que se erguem. São invisíveis, mas sentem-se.
Parti de um exemplo individual para estabelecer a relação com a identidade nacional.
Esse é outro aspeto da identidade: tem um lado individual e outro coletivo. A nível individual podemos começar pela mais básica, a civil: nome, idade, estado civil, profissão, sexo, impressões digitais, etc. Eu sou a Nazaré Torrão, de 60 anos, mulher, casada, com uma filha, professora universitária. Mas quem sou eu? O que é que os amigos e conhecidos
dirão de mim para me apresentar? O que é que me distingue de outras mulheres casadas com filhos e ensinando na universidade na Suíça?
O que é que fez de mim, de cada um de nós, a pessoa em que nos tornámos, quem somos e que constitui a nossa identidade? Um elemento será sem dúvida o país em que nascemos, a profissão que exercemos, a família em que crescemos, o lugar onde nos socializámos, as pessoas com que nos cruzámos ao longo da vida e nos influenciaram, os livros que lemos e os filmes que vimos, as conversas que tivemos. Tudo isto remete para a troca de experiências e para a interação entre o indivíduo e os outros, o meio social em que está
inserido. Pelo que podemos concluir que a identidade comporta vários aspetos: a identidade pessoal primária (a do BI), a identidade pessoal – as características que nos marcam e que se mantêm ao longo da vida, prosaicamente designadas por caráter, e a nossa história, que ligada
à sociedade em que crescemos vai construindo uma identidade que evolui, apesar de algumas características de base que não se alteram.
Gostaria de salientar dois aspetos a ter em conta do que ficou dito até agora: o primeiro é que a identidade tem uma parte que não se altera e outra que vai evoluindo. Eu sou eu, com os mesmos traços de caráter, mas já não sou a mesma pessoa que fui aos 25 anos. O segundo é que é múltipla: uma espécie de rede de micro-identidades: a nacional, a profissional, a regional, a linguística, a de género, etc. que, segundo o contexto em que nos encontramos,
ganham mais peso nas nossas avaliações das circunstâncias e consequentemente, nas decisões
que tomamos e no que fazemos. Apesar disso, e retomando o exemplo inicial da atualidade política, a identidade nacional pode, em certas circunstâncias sobrepor-se às restantes na atuação dos indivíduos, é o caso de muitos ucranianos que perante a invasão russa, se sentiram
entre outras coisas, acima de tudo, ucranianos:
N[ão] devemos imaginar que as identidades nacionais não sejam continuamente desafiadas por outros tipos de identidade coletiva – de família, região, religião, classe e género, bem como por associações supranacionais e civilizações religiosas. Mas estas advertências não diminuem o impacto histórico das nações como comunidades “vividas e sentidas”. Certamente
ao nível do indivíduo, a acionalidade é apenas uma de várias identidades, mas é a que pode muitas vezes ser crítica e decisiva. Os indivíduos podem ter “múltiplas identidades” e passar de uma identidade de papel para outra, como a situação parece exigir. Mas as identidades nacionais também podem ser “omnipresentes”: podem abranger, subsumir e colorir outros papéis e identidades, em particular em tempos de crise.
Anthony Smith, 2008, pp. 24-25
Os discursos sobre a identidade são dificilmente comprovados de forma científica. Para isso seriam necessários inquéritos e outros estudos vários e pormenorizados que nos dariam apenas o retrato do que é determinada comunidade num determinado momento. Sempre que
existem mudanças radicais na mentalidade de uma dada sociedade, há períodos de recontextualização da identidade – mudo o olhar com que a sociedade é vista e muda o objeto
observado: a sociedade. Teria pois, pelo menos em parte, que mudar o discurso sobre a identidade.
As descrições da identidade nacional que tentam generalizações estão eivadas de ideologia e resvalam facilmente de descrições factuais e verificáveis para a esfera normativa ou ética. David Hume identificou há muito essa falácia, gerando uma questão conhecida pela questão do ser / dever ser.
Nazaré Torrão
Unité de Portugais / Faculté des Lettres Université de Genève, Cátedra Lídia Jorge (Instituto Camões)